“Epa! Bicha não… Vê lá como fala! Eu sou uma quase mulher…”
Era com esse bordão que a personagem Vera Verão, interpretada pelo já falecido ator Jorge Lafond, levou o público às gargalhadas por muitos anos em um dos esquetes do programa A Praça É Nossa.
Vera não foi a primeira personagem LGBTQ da televisão aberta brasileira e, definitivamente, não foi a última. Lacraia, Valéria, Seu Peru, Capitão Gay, Juninho Play… A lista é longa e está repleta de exemplos.
Mas qual o objetivo de lembrar desses personagens que tão bem fizeram seu papel humorístico? Vamos com calma…
No final de agosto, a Netflix apresentou ao mundo a primeira temporada do seriado O Cristal Encantado: A Era da Resistência, algo que eu particularmente vinha contando os dias para assistir. Com dez episódios, a série conta a história de um grupo de Gelflings que se une para combater a escuridão e os perigosos Skeksis, que ameaçam a vida em Thra.
A série é baseada no filme de Jim Henson, O Cristal Encantado, de 1982, e narra eventos anteriores aos do longa. (E, pra não perder a oportunidade, sinta- se obrigado a assistir as duas obras)
Mas, pelos três sóis, qual poderia ser a ligação entre os personagens brasileiros e os fantoches que habitam Thra?
Uma das protagonistas da série, Deet, é uma Gelfling cheia de amor pela natureza, preocupada com os animais, determinada a fazer o bem e… Filha de um casal homoafetivo. Apesar de não adentrar nos detalhes do relacionamento do casal, a narrativa deixa bem claro: Deet e o irmão mais novo possuem dois pais.
A naturalidade da existência do casal e a espontaneidade com que a narrativa os aborda merece atenção. Nós, como pessoas LGBTQ, estamos acostumados com um espetáculo para apontar a nossa existência nas histórias e é revigorante encontrar uma obra que não precisa gritar a nossa presença. Nós existimos, é isso.
Diferente dos Gelflings, os brasileiros caminham bem longe de ser uma sociedade tolerante. Não é novidade a informação de que nós somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, com uma morte de pessoa LGBTQ a cada 19 horas.
Mas vocês lembram daqueles personagens lá em cima? Eles são representações LGBTQ. E essa é a questão. Não há escassez de figuras gays na rotina do brasileiro, mas analisando um pouco, perceberemos que essas figuras são estereotipadas, visualmente agressivas e excessivamente caricatas, além de, interessantemente, estarem sempre ligadas ao humor e, em sua maioria, serem interpretadas por atores e atrizes heterossexuais.
O país que mais mata LGBTQs é também o que mais usa deles para fazer graça. A sociedade não parece ter problema com personagens homossexuais, desde que estejam no fim da noite e sejam purpurinados o suficiente para fazer rir, nunca sendo um membro da sociedade com sentimentos, trabalhos, amizades e amores. E que o Deus do antigo testamento nos livre de um beijo gay na novela.
Evoluímos? Definitivamente. Nós até temos beijos gays nas novelas. Mas qual a proporção deles em relação aos beijos de casais heterossexuais? E quantos beijos homoafetivos nós temos sem marketing e antecipação midiática sobre? Quantos são um selinho constrangedor depois de uma música inteira tocar? E quantos protagonistas já foram filhos de um casal homoafetivo?
Nós somos protagonistas, nós somos engraçados, não há problemas em ser afeminado; purpurina e estereótipos não são um crime. Mas nós não somos um evento para suprir a cota gay da novela ou para fazer o filme ser bem falado. Nós somos vidas, sensações, emoções.
Devemos fazer rir, mas não usar o humor para manifestar e perpetuar preconceitos. Esse é um lembrete para todos. Criadores de conteúdo e consumidores. Na arte e na vida. Nós só precisamos ser quem nós somos. Até aprendermos isso, pode acrescentar a sociedade Gelfling na lista de povos melhores que nós.
João Will Jr., é mais um daqueles que gosta de fazer muita coisa. Roteirista, escritor, radialista, podcaster, editor… Fascinado por histórias em todas as suas formas.